terça-feira, 29 de março de 2016

Mulheres mochileiras

O espírito desbravador sempre fez parte da essência humana. Graças a ele, continentes foram descobertos e regiões foram ocupadas, criando os mais diferentes tipos de cultura.
No entanto, quando se trata de mulheres, a questão se torna um pouco mais complexa. Ao longo da história, elas foram vítimas de uma construção social do papel feminino que relegou as mulheres ao ambiente doméstico, tornando um tabu qualquer tipo de ocupação do espaço público sem a companhia masculina.
Esse tipo de cultura machista persiste até os dias atuais. Prova disso foi o assassinato de duas turistas argentinas no Equador no início deste mês. Marina Menegazzo e María José Coni foram mortas a pauladas por dois homens que tentaram abusar sexualmente delas. A notícia do crime gerou uma onda de críticas nas redes sociais, onde muitos acusaram as turistas de “pedirem por isso” por estarem viajando sozinhas. “Sozinhas”, no caso, significa sem a companhia de um homem.
As críticas revoltaram mulheres apaixonadas por viagens e deram início à campanha #ViajoSola, em que mulheres que viajam sozinhas ou acompanhadas de uma amiga compartilham fotos mostrando que, assim como os homens, elas também têm espírito aventureiro e não devem ser julgadas por isso.
Uma representante deste perfil é Nathaly Fogaça, criadora da página do Facebook Chão da América e do blogEstudante do Mundo, onde compartilha suas experiências e se define como “publicitária por formação, mochileira por paixão”. Ela conta que a paixão por viagens despertou em 2012, após uma visita a amigos da Universidade de Integração Latino Americana (Unila), que fica em Foz do Iguaçu, no Paraná, e é frequentada por alunos de vários países da América Latina. O contato com eles fez despertar a curiosidade sobre a cultura latino-americana, e no mesmo ano ela decidiu viajar pelo continente.
“Foi incrível. A cada nova descoberta eu me apaixono ainda mais pela América do Sul. Cada país e povo têm suas particularidades, sua história, sua gastronomia, música, literatura e provar isso por conta própria é incrível. Já estive em alguns países, mas fui de maneiras distintas. De avião/ônibus, fui para Uruguai, Bolívia e Argentina. De carona, fui para Argentina, Chile e Paraguai, além de alguns lugares do Brasil, sempre mesclando viagens solo, com amigos ou com pessoas que conheci na internet.”
Nathaly diz que em todas as viagens que fez inclusive a cidades brasileiras, foi alertada de que estava correndo risco. No entanto, ela afirma que viajar sozinha não é tão perigoso quanto parece e que o medo é fruto de notícias sensacionalistas e da falta de experiência própria das pessoas.
“As notícias sensacionalistas estão ao nosso redor a todo instante e pessoas que se acostumam e aceitam tal conteúdo sem ter tido experiências próprias, vão se basear nestas para definir o que é seguro ou não. Sempre me falam que viajar sozinha é perigoso, mas todos que me falam isso nunca saíram de casa. E todas as manas que já saíram por aí em viagens solo sabem bem do que falo: na estrada as coisas acontecem, as pessoas ajudam e nos sentimos (às vezes) mais seguras do que na nossa cidade. Não é necessariamente uma crítica a quem tem medo disso. Consigo entender tal receio. Na verdade, é um pedido para que cada um vá e tenha sua própria experiência.”
Em suas viagens, Nathaly conheceu outras mulheres mochileiras como ela, tanto pessoalmente quanto virtualmente. “No Chile, um país que tem a carona muito forte na sua cultura, conheci garotas que viajavam assim também, embora muitas vezes acompanhadas de amigos homens. Apenas uma vez me reuni com duas mochileiras na estrada e viajamos juntas por um dia. Já no Brasil, não tive a mesma sorte. Encontrei apenas depois das minhas viagens mochileiras com a mesma sede de aventura. E são muitas!”
Segundo ela, o único desconforto foram os assédios verbais (as chamadas “cantadas”) de alguns motoristas que deram carona a ela. “Os motoristas não entendem o que uma mulher sozinha está fazendo ali, viajando. E sempre aproveitam para tirar uma casquinha. É mega desconfortável, mas todos eles sempre respeitaram meus ‘nãos’ sem grandes problemas”, diz Natahly. Preconceito, de fato, ela diz ter sofrido apenas uma vez, quando namorou um rapaz chileno. “Ele tinha um pensamento conservador de que mulheres estão aqui para cuidar da casa, filhos, servir seus maridos…foi difícil explicar outro lado da moeda para ele”.
No entanto, Nathaly concorda que, embora tenha avançado bastante, “nossa sociedade ainda é muito machista e acredita que mulheres não ‘foram feitas’ para andar livres e sozinhas mundo a fora”.
“Desde sempre nos foi imposto como atividade principal, cuidar da casa e dos filhos e, ainda hoje, qualquer coisa que saia dessa ‘regra’ é vista como loucura: ser solteira, ir morar sozinha, decidir não ter filhos, ser a principal responsável pelas contas do lar, decidir focar na carreira, mochilar sozinha….nenhuma dessas atividades nos é ‘permitida’. Quando homens decidem fazer coisas do tipo, principalmente mochilar, são definidos como desbravadores, corajosos, destemidos. Porém, quando nós fazemos isso, insistem em nos chamar de loucas, em perguntar se não temos medo e apontar inúmeros motivos para desistirmos; poucas são as pessoas que nos incentivam de fato.
Questionada sobre as críticas às turistas argentinas assassinadas, ela afirma que elas comprovam o tabu que ainda existe sobre o tema, mas defende que a violência não pode ser usada como justificativa para tolher a liberdade feminina.
“O trágico ocorrido com as mochileiras mendocinas veio para confirmar tudo isso. Mesmo viajando juntas, as pessoas insistem em afirmar que elas estavam sozinhas, entre outros argumentos que tentem justificar a ação dos assassinos. Elas não estavam sozinhas e nada vai justificar a violência que sofreram. Nada. Somos livres e devemos estar seguras em qualquer parte do mundo. Acompanhadas ou não. Nada justifica a violência.”



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